quando a ganância vira crime contra a vida
O Brasil assiste, em tempo real, a um surto de intoxicação por metanol em bebidas falsificadas. O Ministério da Saúde registra até agora mais de 200 casos suspeitos, sendo que a maioria em São Paulo, e orientou estados e municípios a notificarem imediatamente os casos suspeitos, montando sala de situação nacional. Já há 2 mortes confirmadas e outras 13 sob investigação.
Enquanto as vítimas lotam hospitais, laboratórios clandestinos seguem ativos. Em Brasília, a polícia descobriu um esquema de falsificação que abastecia bares com rótulos reaproveitados e líquidos desconhecidos retrato de uma cadeia criminosa que vai da fábrica ilegal ao balcão.
O pano de fundo é um mercado paralelo gigantesco. Entidades do setor estimam que mais de um terço das bebidas alcoólicas vendidas no país sejam ilegais ou falsificadas. Se apenas parte disso contiver metanol, a tragédia sanitária está dada.
O metanol é um álcool industrial, não próprio para consumo humano. No organismo, ele se transforma em ácido fórmico, que causa cegueira, lesões no sistema nervoso central, acidose metabólica e pode levar à morte. Os sintomas iniciais confundem: náusea, vômito, dor de cabeça e tontura; horas depois, surgem visão turva, dor ocular, confusão, convulsões e parada respiratória. Sem tratamento rápido, as sequelas podem ser irreversíveis.
A OMS já alertou que surtos por bebidas adulteradas com metanol têm altas taxas de letalidade e podem sobrecarregar hospitais. Não é novidade, é omissão acumulada.
Há duas responsabilidades inescapáveis:
- Poder público. As evidências de risco estavam na mesa. Era dever da vigilância sanitária, das polícias e dos Procons fechar rotas de falsificação, rastrear embalagens, reforçar inspeções e comunicar a população com rapidez. Se chegamos a um surto com mortos, falhou a prevenção. Agora, o mínimo é manter a sala de situação, padronizar protocolos, ampliar testagem e garantir antídotos (fomepizol/etanol hospitalar).
- Elos do comércio. Há bares, distribuidores e “marreteiros” que compram barato sabendo da origem ilícita, reutilizam garrafas e servem “drinques” que não poderiam ser chamados de bebidas. Isso é crime contra as relações de consumo e contra a vida, não “erro”. É uma cadeia criminosa que fatura com morte e cegueira.
O que mudar tem que mudar
- Tolerância zero e fechamento sumário. Autuação com interdição imediata de pontos de venda que comercializem produtos sem procedência ou com indícios de adulteração; lacração do estoque e comunicação instantânea à polícia e ao Ministério Público. (Base em precedentes de operações que qualificam o ato como crime contra as relações de consumo.)
- Rastreamento na garrafa. Tornar obrigatório o uso de selos invioláveis e códigos de verificação pública (QR) por lote, com checagem via app do consumidor; multas progressivas para quem vender garrafas vazias a terceiros. (A OMS recomenda gestão de risco e medidas de controle em surtos de metanol.)
- Pena dura e efeito dissuasório. Tipificar qualificadoras quando a falsificação envolver substância tóxica com risco à vida, elevando penas de reclusão e prevendo fechamento definitivo e perda do CNPJ para reincidentes.
- Repressão de cadeia. Prioridade policial para fábricas clandestinas, rotas de rótulos/garrafas e provedores de insumos; integração com Receita, fazendas estaduais e prefeituras.
- Saúde preparada. Estoques regionais de antídoto (fomepizol) e protocolos para hemodiálise precoce em casos graves; campanha de comunicação com sinais de alerta e mapa oficial de unidades aptas. (O Ministério já sinalizou ações e compras de antídotos; é preciso capitalizar.como reconhecer risco e agir
- Desconfie de “promoções” absurdas e de bebida servida fora da embalagem original sem lacre intacto. Garrafas com rótulo desalinhado, tampa frouxa ou sem selo oficial são alertas. (Órgãos internacionais lembram que metanol é inodoro e pode “passar” por álcool comum, a suspeita precisa ser visual e de procedência.
- Sintomas de alerta (até 24h): dor de cabeça intensa, náusea, tontura, visão borrada, dor ocular, confusão. Procure emergência imediatamente e informe “suspeita de metanol”. O risco de cegueira e morte aumenta com o atraso terapêutico.
- Denuncie ao Procon/Polícia Civil estabelecimentos que vendem bebida sem procedência ou reutilizam garrafas.
Não estamos diante de “casos isolados”, mas de uma economia do veneno: falsificação em escala, comercial conivente e fiscalização tardia. O resultado são brasileiros cegos, famílias destruídas e mortes evitáveis. A resposta precisa ser rápida e exemplar: fechamento definitivo de estabelecimentos flagrados, cadeia para fabricantes e penas duríssimas para quem lucra com metanol. O Estado deve fazer sua parte, com rigor, inspeção e antídotos à mão, mas a sociedade também: não compre o barato que custa vidas.

*Miguel Daoud é comentarista de Economia e Política do Canal Rural
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